Despachos/Pareceres/Decisões
16196520/2015
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Acórdão - DJ nº 0001619-65.2014.8.26.0586 - Apelação Cível
: 09/04/2015
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº 0001619-65.2014.8.26.0586, da Comarca de São Roque, em que é apelante GÁS NATURAL SÃO PAULO SUL S.A, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO ROQUE.
ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, V.U.", de conformidade com o voto do(a) Relator(a), que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores JOSÉ RENATO NALINI (Presidente), EROS PICELI, GUERRIERI REZENDE, ARTUR MARQUES, PINHEIRO FRANCO E RICARDO ANAFE.
São Paulo, 26 de março de 2015.
ELLIOT AKEL
RELATOR
Apelação Cível n.º 0001619-65.2014.8.26.0586
Apelante: Gás Natural São Paulo Sul S.A.
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Roque
Voto nº 34.184
REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA JULGADA PROCEDENTE – RECUSA DE INGRESSO DE CARTA DE SENTENÇA – INSTITUIÇÃO DE SERVIDÃO DE PASSAGEM – DESCRIÇÃO PRECÁRIA DO IMÓVEL SERVIENTE – INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS MÍNIMOS DE IDENTIFICAÇÃO E LOCALIZAÇÃO – NECESSIDADE DE PRÉVIA RETIFICAÇÃO DA ÁREA, EM OBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE OBJETIVA – RECURSO NÃO PROVIDO.
Trata-se de recurso de apelação interposto contra a sentença do MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Roque, que julgou procedente a dúvida suscitada e manteve a exigência de prévia retificação da área objeto da transcrição número 8.288 do Livro 3-S para possibilitar a abertura de matrícula e o registro da carta de sentença referente à existência de servidão de passagem no imóvel, pois, não obstante a área da servidão esteja perfeitamente descrita e caracterizada, a base onde ela se insere não está, o que impede o controle da continuidade e da especialidade. Ressalva o julgado que, mesmo que assim não fosse, a concordância do interessado com o outro óbice apontado na nota devolutiva, ao apresentar no curso do procedimento o número do CPF de Silvio Teixeira, para a correta identificação do titular do direito real, impede o registro pretendido.
A apelante afirma, em síntese, que não é caso de abertura de novo registro imobiliário, mas apenas de registrar a carta de sentença referente à instituição de servidão administrativa na transcrição do imóvel. Diz que por não se tratar de servidão civil, instituída em favor do particular, e por se tratar de servidão administrativa pautada em Decreto de Utilidade Pública, deve prevalecer o interesse público. Acrescenta que a carta de sentença traz todos os elementos necessários à abertura da matrícula, que a regularização da situação do imóvel no registro imobiliário, para atender as exigências da nova lei é ônus do proprietário, que a área servienda está perfeitamente descrita, e que o obstáculo ao ingresso deixará de atender o princípio da publicidade, além de não contribuir para a segurança que deve emanar do registro de imóveis.
A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso.
É o relatório.
A transcrição número 8.288 relativa ao imóvel serviente assim o descreve:
“8288 – Anterior: Trans. Nº 6355, de 19-2-1946, fls.190, do L° 3-Q.- DATA: 24 de dezembro de 1948.- CIRCUNSCRIÇÃO: São Roque.- DENOMINAÇÃO OU RUA E NÚMERO: Chácara, no Bairro do Marmeleiro, com área de 14,52ha.- CARACTERISTICOS E CONFRONTAÇÕES: Uma chácara, situada no Bairro do Marmeleiro, deste município e comarca de São Roque, com área total de seis (6) alqueires, ou sejam, 14,52 há., mais ou menos, sendo cinco e meio (5 ¹/²) alqueires ou 13,31 há., em pasto e meio (¹/²) alqueire ou 1,21 ha., cultivado, chácara essa, cercada de arame, com quatro fios, contendo três (3) casas de tijolos, cobertas de telhas e mais três (3) cômodos em separado, também de tijolos, tudo em péssimo estado de conservação e diversas árvores frutíferas, dentro das seguintes divisas:- “Começa no canto da divisa de Silvio Teixeira de Carvalho, na estrada de rodagem, desce por uma cerca de arame, até encontrar o ribeirão, dividindo com o mesmo Silvio, até encontrar um pau de espinho, até o pé de uma ponte; daí segue até encontrar uma arvora de arueira; desta segue à direita em reta até encontrar um valo, deixando nessa reta um espaço de quatro (4) metros da divisa do Sr. Paulo Gonçalves da Silva, para passagem do Sr. Silvio Teixeira de Carvalho; segue dividindo com Silvio Teixeira, justamente pelos quatro (4) metros de passagem, até encontrar uma valeta, dividindo com o mesmo Silvio; faz canto à esquerda e segue mais ou menos em reta até encontrar uma valeta, dividindo com o mesmo Silvio; dessa valeta, sempre dividindo com Silvio, segue mais ou menos em reta, até encontrar outra valeta, que divide com Pedro Miraca; faz canto e desce por uma cerca de arame, dividindo com Miraca até encontrar a estrada de rodagem; faz canto à esquerda, segue pela mesma estrada, até o ponto de partida, adquirida pela transcrição nº 6355, de 19 de fevereiro de 1946.”
Trata-se de transcrição antiga e de imóvel de área extensa, cuja descrição é precária e não apresenta nenhuma técnica, pois indica como pontos de referência de suas medidas e limites “cercas de arame”, “ribeirão”, “pau de espinho”, “pé de ponte” etc., de modo que não há o mínimo de elementos que permitam sua identificação e localização, não se sabendo, inclusive, se o imóvel é urbano ou rural. A imprecisão da descrição da área na transcrição impossibilita o registro da área dominante, objeto da servidão, descrita no memorial descritivo apresentado, pois é impossível identificar onde ela se insere na área serviente, além de existir sobre esta, como observado pelo registrador, servidão de passagem em favor do confrontante Silvio Teixeira de Carvalho.
Na sistemática da Lei de Registros Públicos em vigor, a matrícula é o núcleo do assentamento imobiliário e reclama observância ao princípio da especialidade objetiva; porém, mesmo que assim não fosse, seria inviável o registro da carta de sentença na transcrição pela ausência de elementos mínimos identificadores do imóvel serviente.
Afrânio De Carvalho, na clássica obra “Registro de Imóveis”, 4ª edição, Editora Forense, ao tratar do tema “Matrícula No Registro Geral”, Capítulo 18, consigna que na relação dos cinco livros que possuem divisão completa em cinco espécies (Protocolo; Registro Geral; Registro Auxiliar; Indicador Real; Indicador Pessoal) e que têm por princípio único diretivo a função desempenhada, se sobressai, por sua importância, o “registro geral”, que, como recipiente dos direitos reais, aos quais transmite os efeitos de publicidade e de constitutividade, aparece como verdadeiro sensório do registro, de onde emanam os reflexos que movimentam o tráfico jurídico imobiliário. Este livro tem função precípua de centro de convergência de atos jurídicos de aquisição, transmissão, oneração ou extinção de direitos reais, sem que essa especificidade seja turvada pela intromissão de atos de outra natureza.
Nessa ordem de ideias, a presença da matrícula no registro geral já indica, por si só, que ela exprime um ato de movimentação de direito real e a posição eminente que aí lhe foi conferida atesta, por sua vez, que se trata do mais importante: a aquisição da propriedade. Os efeitos da propriedade só se integram com a inscrição no livro próprio.
Ainda de acordo com o mesmo autor, essa inscrição era feita anteriormente no antigo “livro de transmissões” (livro n.º 3) onde existe de certo modo o nome de “transmissão”, que era na ocasião o próprio para recebê-la, e que passou a ter a denominação de “matrícula”, presente no “livro geral”. Surgiu, por tal motivo, a discussão acerca da natureza da matrícula – se se trata de ato jurídico ou um simples ato cadastral.
No antigo livro de transmissões (livro n.º 3) o ato se apresentava numa folha coletiva, destinada a uma pluralidade de imóveis, e na matrícula o ato se apresenta numa folha individual, dedicada a um só imóvel, ou seja, no primeiro o ato se consignava por extrato e no segundo por narrativa, portanto, houve mudança apenas na feição exterior do ato, sem alteração de sua substância, de modo que o ato que tinha na transcrição certa forma, assume na matrícula forma diversa, e a matrícula, como transferência da transcrição de um para outro livro, continua a ser ato jurídico de aquisição da propriedade. Como o livro antigo se encerra, quando se abre o novo, é neste, precisamente na matrícula, que passa a ter fundamento o direito de propriedade sobre o imóvel. A eficácia real, que a lei civil lhe reconhece no livro antigo, mantém-se no livro novo, porque o ato jurídico continua a ser o mesmo, tanto que, ao lançar-se no livro novo a descrição exata do imóvel, lança-se a seguir a menção do seu proprietário. Na verdade, se se negasse o caráter dominial e, portanto, jurídico da matrícula, daí se seguiria que o ato de inscrição subsequente, deixaria de ter objeto. É a matrícula que define, em toda a sua extensão, modalidades e limitações, a situação jurídica do imóvel.
Estabelecida a natureza jurídica da matrícula, cumpre verificar em que momento ocorre sua abertura. Dispõe o artigo 228 da LRP que “A matrícula será efetuada por ocasião do primeiro registro a ser lançado na vigência desta Lei, mediante os elementos constantes do título apresentado e do registro anterior nele mencionado”, e, do mesmo modo, o artigo 176 da mesma Lei, que trata da matrícula, estabelece no inciso I do §1º, que esta será aberta por ocasião do primeiro registro a ser feito.
O vocábulo “registro” foi empregado em sentido lato do primeiro assento, seja esse de inscrição (registro em sentido estrito) ou averbação. Esta solução foi dada por ser inviável ao Cartório abrir a matrícula de todos os imóveis simultaneamente, e transportá-los ao “registro geral”. Por analogia, deve ser aberta a matrícula também a partir do requerimento do interessado.
O inciso II do mesmo artigo 176, dispõe sobre os requisitos da matrícula, e, no número “3”, alíneas “a” e “b”, consagra o princípio da especialidade objetiva, ao exigir a identificação do imóvel como um corpo certo, permitindo o encadeamento dos registros e averbações subsequentes, em conformidade ao princípio da continuidade.
De acordo com o conceito de Afrânio de Carvalho, na mesma obra acima mencionada, “O princípio da especialidade significa que toda inscrição dever recair sobre um objeto precisamente individuado”, e, ao se referir ao mandamento da individuação do imóvel lançado no regulamento dos registros públicos, consigna que “Além de abranger a generalidade dos atos, contratuais e judiciais, o mandamento compreende também a generalidade dos imóveis, urbanos e rurais, exigindo a cabal individuação de todos para a inscrição no registro”, e que “A sua descrição no título há de conduzir ao espírito do leitor essa imagem. Se a escritura de alteração falhar nesse sentido, por deficiência de especialização, terá de ser completada por outra de rerratificação, que aperfeiçoe a figura do imóvel deixada inacabada na primeira. Do contrário, não obterá registro.”
Neste sentido os precedentes trazidos pelo registrador e que bem se enquadram ao caso em tela: Apelações Cíveis números 745-6/1; 1.204-6/0; 943-6/5 e 0017110.60.2008.8.26.0348 (fls.4/13).
Na Apelação Cível n.º 0001243-53.2013.8.26.0315, por mim relatada, e que também teve como apelante a empresa Gás Natural São Paulo Sul, do mesmo modo, foi decidido acerca da necessidade da prévia retificação da área serviente, para possibilitar o registro do título apresentado. A ementa assim dispõe:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – FALTA DE REPRESENTAÇÃO – ADVOGADO NÃO CONSTITUÍDO PELA APELANTE NOS AUTOS – PREJUDICIALIDADE – EXAME EM TESE DA PERTINÊNCIA DA RECUSA – ESCRITURA DE INSTITUIÇÃO DE SERVIDÃO DE PASSAGEM – DESCRIÇÃO PRECÁRIA DO IMÓVEL SERVIENTE – NECESSIDADE DE PRÉVIA RETIFICAÇÃO A FIM DE PERMITIR A CORRETA LOCALIZAÇÃO DA SERVIDÃO DO IMÓVEL SERVIENTE – PRECEDENTES DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA – RECURSO NÃO CONHECIDO.”
Em suma, é a matrícula que define, em toda a sua extensão, modalidades e limitações, a situação jurídica do imóvel, razão pela qual sua abertura, mesmo para fins de registro de instituição de servidão administrativa, deve ser feita em observância ao mencionado artigo 228 da Lei de Registros Públicos (o artigo 196 tem a mesma redação) desde que os elementos constantes do título e do registro anterior sejam suficientes e preenchidos os requisitos registrários, no caso, o da especialidade objetiva, o que não se verifica no caso vertente.
O argumento de que é ônus do proprietário do imóvel promover sua retificação não serve de justificativa para afastar a exigência prevista em lei. Além do mais, embora o titular do domínio tenha como regra legitimidade para pedir a retificação da área, nada obsta que tal pretensão seja apresentada por quem demonstre interesse, como é o caso da apelante, que necessita da retificação para possibilitar o registro do título apresentado, pois, não seria razoável que ficasse à mercê da inércia de terceira pessoa quanto a tal providência.
É neste sentido que deve ser interpretada a expressão “interessado” trazida no artigo 213, inciso I, da Lei de Registros Público, e que confere à recorrente legitimidade para requerer a retificação.
Por fim, a qualificação da titular do direito real, Ordem Carmelitana Descalça No Brasil, na procuração outorgada ao seu advogado na ação da qual foi extraída a carta de sentença, é suficiente à sua identificação e, portanto, não configura óbice ao registro.
Isto posto, nego provimento ao recurso.
HAMILTON ELLIOT AKEL
Corregedor Geral da Justiça e Relator
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