Despachos/Pareceres/Decisões
10208229/2010
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Acórdão - DJ 990.10.208.229-6 - Apelação Cível
: 26/11/2010
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 990.10.208.229-6, da Comarca da CAPITAL, em que é apelante o HOSPITAL INFANTIL SABARÁ S/A eapelado o 4º OFICIAL DE REGISTRO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA da referida Comarca.
ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento ao recurso de conformidade com o voto do Desembargador Relator que fica fazendo parte integrante do presente julgado.
Participaram do julgamento os Desembargadores VIANA SANTOS, Presidente do Tribunal de Justiça, MARCO CÉSAR, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça, MUNHOZ SOARES, Corregedor Geral da Justiça, CIRO CAMPOS, LUIS GANZERLA e MAIA DA CUNHA, respectivamente, Presidentes da Seção Criminal, de Direito Público e de Direito Privado do Tribunal de Justiça.
São Paulo, 31 de agosto de 2010.
(a) BARRETO FONSECA, Relator
V O T O
REGISTRO CIVIL DE PESSOA JURÍDICA – Transformação de sociedade anônima em fundação – Inadmissibilidade – Exegese e alcance do art. 2.033 do Código Civil – Dúvida procedente – Recurso não provido.
Trata-se de apelação interposta contra sentença (fls. 100-103) pela qual se manteve recusa manifestada pelo oficial de registro civil de pessoa jurídica.
Aduziu a apelante, em essência, o seguinte: em 18 de setembro de 2009 foi lavrada escritura pública de instituição da fundação, mediante transformação da sociedade anônima em que figurava como único sócio o Senhor José Luiz Setubal, e todas as formalidades foram observadas; a transformação de sociedade anônima em fundação é permitida no art. 2.033 do Código Civil; a exegese aplicada pelo registrador contravém ao axioma verba cum effectu sunt accipienda, bem como aos princípios da economia e da eficiência (fls. 105-118).
A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo provimento do recurso (fls. 127-137).
Esse o relatório.
De início, observa-se que o ato em questão consiste em registro stricto sensu e não averbação.
Com efeito, não preexistindo registro civil do ato constitutivo do Hospital Infantil Sabará, a admissão do título (“escritura pública de ata de assembléia geral extraordinária de transformação de sociedade anônima em fundação de direito privado” – fls. 15-19), com declaração em livro próprio, significará existência legal da pessoa jurídica (Lei nº 6.015/73, art. 119; Código Civil, arts. 45 caput, 985 e 1.150).
Assim, este Colendo Conselho Superior da Magistratura é o órgão competente para reapreciação da matéria em grau recursal, ex vi do art. 64, inciso VI, do Código Judiciário e do art. 16, inciso V, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça.
No que tange ao mérito recursal, a dúvida é procedente.
Cumpre esclarecer que ao reexaminar a qualificação do título apresentado para registro o Poder Judiciário exerce função atípica, de natureza administrativa (Lei nº 6.015/73, art. 204). Assim, a atuação correcional não visa precipuamente à composição de situação individual, pois os efeitos da decisão não se exaurem na determinação do justo concreto: o resultado do recurso transcende os limites do caso e assume caráter geral, para disciplina e orientação técnica da atividade registrária e notarial.
Daí a importância da legalidade estrita, sempre ressaltada em precedentes do Conselho Superior da Magistratura:
“Por fim, sabe-se que é preciso estar atento à dialética entre norma e vida, para que aquela não sufoque esta nem esta dissolva-se num caos; sabe-se, ainda, que todo juízo de prudência parte de uma virtude intelectual prática que considere o agir humano concreto, em sua máxima particularidade e, daí, com atenção à realidade pessoal e social em que se busca atingir o justo. Todavia, juízo que se aparta da lei falha, especialmente em sede de qualificação registrária cujo norte maior é a segurança jurídica formal pela publicidade das situações jurídicas certas, que exige denso respeito aos ditames legais e aos princípios de registro imobiliário.” (Apelação Cível nº 498-6/3, j. 23.3.06, Rel. Des. Gilberto Passos de Freitas).
Em outro aresto, o então Juiz Auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça, Des. Ricardo Henry Marques Dip, anotou que, “não possuindo a mais elevada função de jurisdicionalidade, a qualificação registral não pode ultrapassar a esfera da legalidade estrita, porque a repartição do justo, no que concerne à atividade do registrador, está predeterminada e incluída no resguardo da segurança jurídica” (Apelação Cível nº 6.962-0/3, j. 4.8.87, Rel. Des. Sylvio do Amaral).
Assim, o pedido de registro do ato constitutivo é aferido sob o critério da legalidade estrita, abstraídas as considerações da apelante sobre outros princípios de direito.
E, embora compreensível a praticidade e economia para o desenvolvimento do objeto da apelante, não cabe a pretendida transformação de sociedade anônima em fundação.
O instituto da transformação, conforme precedente da Corregedoria Geral de Justiça, “só se opera entre sociedades” (parecer exarado em 24.7.06 pelo Juiz Roberto Maia Filho no processo 494/2006, aprovado pelo então Corregedor Geral da Justiça, Desembargador Gilberto Passos de Freitas, em 8.8.06). Na ocasião, pretendia-se converter associação em fundação.
Deveras, tanto na Lei nº 6.404/76 (arts. 220 a 222) como no Código Civil (arts. 1.113 a 1.115) só é prevista a transformação de sociedades de um tipo para outro.
A utilidade é inegável, pois a transformação não enseja a extinção da pessoa jurídica, mas apenas uma nova configuração da relação entre os sócios:
“A transformação de uma sociedade corresponde à alteração da forma típica inicialmente escolhida, o que implica uma repactuação do contrato social já celebrado. Tal ato coletivo pressupõe a existência de personalidade jurídica e não modifica a realidade econômica ou social em que se assenta o empreendimento comum desenvolvido, mas apenas a fórmula jurídica reguladora da agregação dos sócios” (Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência, coordenador Cezar Peluso, São Paulo: Manole, 2009, pág. 1045).
Porém, reitere-se que na ordem jurídico-legal vigente a transformação não se estende às outras pessoas jurídicas.
Para sustentá-la a apelante invocou o preceito do art. 2.033 do Código Civil:
“Art. 2.033. Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referidas no art. 44, bem como a sua transformação, incorporação, cisão ou fusão, regem-se desde logo por este Código.”
No entanto, a norma evidentemente é transitória, para regulação de direito intertemporal, o que se revela não apenas pelo contexto, mas também na locução adverbial “desde logo”, reafirmando-se o princípio da eficácia geral e imediata das leis (Decreto-lei nº 4.657/42, art. 6º, caput).
Além disso, a apelante propugna exegese gramatical, mas o processo interpretativo não pode se resumir à análise sintática da proposição normativa, sem considerar a necessidade de coerência e unidade do sistema jurídico.
Ainda que recebida com algum valor na hermenêutica, a idéia de que o legislador não usa vocábulos desnecessários (verba cum effectu sunt accipienda), longe de ser absoluta, cada vez mais é infirmada pela realidade legislativa, sobretudo num país onde a criação ou modificação do texto legal é propalada como panaceia, em vez de se concretizar a execução das diversas leis preexistentes.
Ainda, ao se possibilitar a transformação de sociedade em fundação por singela aplicação do art. 2.033 do Código Civil, a hipótese inversa, por corolário lógico, teria de ser também alcançada pelo preceito.
Mas a fundação se distingue substancialmente das corporações (associações e sociedades), cujo elemento estrutural é o agrupamento de pessoas. Na fundação, ao revés, prepondera o componente patrimonial afetado a um fim.
Desse modo, aceitar a livre transformação entre pessoas jurídicas como regra geral, especialmente a conversão em sociedade, não se coadunaria com o sentido legal da fundação, haja vista sua finalidade vinculada (Código Civil, art. 62, parágrafo único) e imutável (ibidem, art. 67, inc. II).
No mais, o fato de que outros oficiais procederam ao registro em situação similar não tem relevo, pois no Conselho Superior da Magistratura é assente o entendimento de que erros pretéritos não legitimam novas irregularidades (Apelação Cível nº 28.280-0/1, Rel. Des. Antonio Carlos Alves Braga, j. 15.12.95).
Posto isso, nega-se provimento ao recurso.
(a) BARRETO FONSECA, Corregedor Geral da Justiça em exercício e Relator
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