Despachos/Pareceres/Decisões
10760/2004
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ACÓRDÃO _ DJ 107-6/0
: 25/03/2009
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 107-6/0, da Comarca de PALMEIRA D'OESTE, em que é apelante GESUALDO NILTON DE TOLEDO e apelado o OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA da mesma Comarca.
ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do relator que fica fazendo parte integrante do presente julgado.
Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores LUIZ TÂMBARA, Presidente do Tribunal de Justiça e MOHAMED AMARO, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.
São Paulo, 25 de março de 2004.
(a) JOSÉ MÁRIO ANTONIO CARDINALE, Corregedor Geral da Justiça e Relator
V O T O
Registro de imóveis - Dúvida - Registro de hipoteca convencional - Impossibilidade, diante do prévio registro de hipoteca constituída por cédula de crédito rural - Inteligência do artigo 59 do Decreto-lei nº 167/67 e do artigo 1.420 do Código Civil de 2002.
Trata-se de apelação interposta por Gesualdo Nilton de Toledo, tempestivamente, contra r. sentença que julgou procedente dúvida suscitada pelo Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoa Jurídica e Tabelião de Protesto de Letras e Títulos da Comarca de Palmeira D'Oeste, e negou o ingresso de escritura pública de confissão de dívida, com garantia hipotecária, na matrícula 5.498, o que fez em razão da indisponibilidade relativa incidente sobre bem gravado por hipoteca dada em cédula de crédito rural, na forma do Decreto-lei nº 167/67.
Sustenta o apelante, em suma, que a escritura pública de confissão de dívida e constituição de garantia hipotecária foi lavrada em 14 de janeiro de 2003, na vigência do Código Civil de 2002 que em seu artigo 1.476 estabelece que o dono do imóvel dado em hipoteca pode sobre ele constituir outra hipoteca, e em seu artigo 1.475 prevê que é nula a cláusula que proíbe o proprietário de alienar o imóvel hipotecado. Diz que quem pode alienar também pode hipotecar e que a negativa de registro da hipoteca contraria dispositivo legal. Aduz que o valor do imóvel excede o dos créditos garantidos pelas hipotecas e que o primeiro credor hipotecário somente tem preferência, em relação ao segundo, para receber seu crédito. Afirma que o Código Civil de 2002 não condiciona a constituição da segunda hipoteca à anuência do credor que tem seu crédito garantido pela hipoteca com menor grau.
O Dr. Promotor de Justiça, em primeira instância, e a Douta Procuradoria Geral de Justiça opinaram pelo não provimento do recurso (fls. 42/44 e 49/52).
É o relatório.
O apelante pretende o registro de hipoteca convencional que foi constituída sobre imóvel gravado por anterior hipoteca vinculada a cédula de crédito rural. Afirma, para obter o registro, que a indisponibilidade relativa prevista no Decreto-lei nº 167/67 não prevalece diante das normas contidas nos artigos 1.475 e 1.476 do Código Civil de 2002.
O artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil estabelece que: "A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior."
Ocorrida a inteira revogação da lei anterior pela lei nova diz a doutrina clássica que houve abrogação, e sendo a revogação parcial diz que houve derrogação.
Tanto a abrogação como a derrogação podem ocorrer de forma expressa ou tácita.
Sobre as formas adotadas para a revogação expressa ensinam Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho, in A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Comentada, Vol. I, Livraria Editora Freitas Bastos, 1943, pág. 75, que:
"A revogação expressa é, algumas vezes, singular, taxativa, e refere-se especialmente à disposição abolida; noutras, porém, é geral, compreensiva, e aplica-se a todas as disposições contrárias, sem individualização.
Este último sistema é, entre nós, de prática usualíssima, rara sendo a lei, cujo artigo não declare - revogam-se as dispõsições em contrário - (b)."
Em suas Disposições Finais e Transitórias (artigo 2.045) o Código Civil de 2002 expressamente declara que ficam revogados o Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071, de 1916) e a Primeira Parte do Código Comercial (Lei nº 556, de 1850), o que não afasta a revogação tácita das leis que regulamentavam matérias que passaram a ser inteiramente disciplinadas pelo novo Código e das que continham princípios incompatíveis com o deste.
Não prevista a revogação expressa, é o caso de verificar se o artigo 59 do Decreto-lei nº 167/67 foi derrogado pelo novo Código Civil.
Tal derrogação somente poderia ser considerada como ocorrida se existisse incompatibilidade absoluta entre a lei anterior e a nova, pois o Código Civil de 2002 não regulamentou os títulos de crédito rural.
E ao tratar da hipoteca o Código Civil de 2002 não regulamentou inteiramente a matéria que também continua regida por leis especiais, como, v.g., o Decreto-lei 413/69, a Lei nº 6.313/75, a Lei nº 6.840/80, e o próprio Decreto-lei nº 167/67.
A manutenção de leis especiais que tratam da hipoteca, na realidade, está prevista no artigo 1.486 do Código Civil de 2002 que assim estabelece: "Podem o credor e o devedor, no ato constitutivo da hipoteca, autorizar a emissão da correspondente cédula hipotecária, na forma e para os fins previstos em lei especial."
A par disto, repito, o Código Civil de 2002 não regulamentou inteiramente as hipotecas constituídas por meio de cédulas de crédito rural, industrial, comercial e à exportação, e somente se referiu às cédulas hipotecárias mediante remissão a leis especiais que regem esta matéria.
Permanecem vigentes, deste modo, as leis especiais que contém disposições que não se encontram no novo Código Civil, que é lei geral, e que não são com este incompatíveis. Sobre esta matéria é inteiramente aplicável a seguinte lição de Saredo, citada por Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho na obra retro referida, pág. 83:
"- Quando leis especiais regulam matéria compreendida num Código ou em outra lei geral, mas conteem, sôbre a mesma, disposições que não se encontram no Código ou na lei geral e que não contradizem ao novo direito, continuam em vigor, em relação a todas as disposições que devem ser consideradas como parte integrante do novo Código ou da nova lei (d)."
Emprega-se em relação a estas leis especiais a norma contida no parágrafo 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, que assim dispõe: "A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior."
O artigo 59 do Decreto-lei nº 167/67 estabelece que os bens objeto de penhor ou de hipoteca constituídos por cédula de crédito rural não podem ser vendidos sem prévia anuência do credor, por escrito.
E, por disposição contida no artigo 1.420 do Código Civil de 2002, as pessoas que não podem alienar também não podem empenhar, hipotecar ou dar em anticrese, assim como não podem ser dados em penhor, anticrese e hipoteca os bens que não podem ser alienados.
Ao assim dispor criou o legislador garantia exclusiva em favor dos órgãos financiadores da economia rural, o que fez por meio de norma cogente, contida em lei especial que não foi revogada pelo Código Civil de 2002.
Esta espécie de indisponibilidade relativa, também instituída por outras leis em favor dos detentores de hipotecas vinculadas à cédula de crédito à exportação (artigo 3º da Lei nº 6.313/75), cédula de crédito comercial (artigo 5º da Lei nº 6.840/80) e cédula de crédito industrial (artigo 51 do Decreto-lei nº 413/69), não conflita com as normas gerais estatuídas para a hipoteca no Código Civil de 2002, assim como não conflitava com as normas da mesma natureza contidas no Código Civil de 1916.
A regra geral contida no artigo 1.476 do Código Civil de 2002, que foi invocado pelo apelante, encontra limites nas normas especiais que tornam relativamente indisponíveis os bens vinculados às cédulas de crédito rural, industrial, comercial e à exportação, o que implica dizer que não existe conflito de normas e que muito menos houve revogação das referidas leis especiais pelo Código Civil vigente.
O artigo 1.475 do Código Civil de 2002, por sua vez, veda a instituição de inalienabilidade convencional em relação ao proprietário do imóvel hipotecado, o que nenhuma relação tem com a indisponibilidade legal estatuída pelo Decreto-lei nº 167/67.
A previsão de indisponibilidade relativa contida no artigo 59 do Decreto-lei nº 167/67, outrossim, não viola os princípios instituídos pelo Código Civil de 2002 que em seu artigo 1.420 continua a contemplar, assim como fazia o Código anterior, hipóteses relativas a pessoas que não podem hipotecar e a bens que não podem ser dados em hipoteca.
Permanece vigente, portanto, o artigo 59 do Decreto-lei nº 167/67, o que veda a constituição de nova hipoteca convencional sem anuência do credor que recebeu o imóvel em hipoteca vinculada à cédula de crédito rural. Reconhecendo a impossibilidade de constituição de nova hipoteca em casos como o presente, como bem lembrou a Douta Procuradoria Geral de Justiça em seu parecer, foram os v. acórdãos prolatados por este Egrégio Conselho Superior da Magistratura nas Apelações Cíveis 31.281-0/3, 21.159-0/9 e 57.123-0/3.
O registro, enquanto não cancelado, produz todos os seus efeitos legais, como estabelece o artigo 252 da Lei nº 6.015/73, e sem a anuência do credor que recebeu, em hipoteca constituída por cédula de crédito rural, o imóvel objeto da matrícula 5.498 do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoa Jurídica e Tabelião de Protesto de Letras e Títulos da Comarca de Palmeira D'Oeste não há como admitir o registro da posterior hipoteca convencional constituída em favor do apelante.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso.
(a) JOSÉ MÁRIO ANTONIO CARDINALE, Relator
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