Despachos/Pareceres/Decisões
72760/2007
:
ACÓRDÃO _ DJ 727-6/0
: 18/03/2009
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 727-6/0, da Comarca de JUNDIAÍ, em que é apelante URBANIZADORA CONTINENTAL S/A – COMÉRCIO, EMPREENDIMENTOS E PARTICIPAÇÕES e apelado o 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA da mesma Comarca.
ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do relator que fica fazendo parte integrante do presente julgado.
Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores CELSO LUIZ LIMONGI, Presidente do Tribunal de Justiça e CAIO EDUARDO CANGUÇU DE ALMEIDA, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.
São Paulo, 16 de agosto de 2007.
(a) GILBERTO PASSOS DE FREITAS, Corregedor Geral da Justiça e Relator
V O T O
Registro de Imóveis. Dúvida suscitada. Necessidade de instrumento público, em regra, para a alienação de imóveis, na dicção do artigo 108 do Código Civil. Exceção prevista na Lei n° 4.380/64, que dispõe sobre o Sistema Financeiro da Habitação (SFH). Benesse que torna a aquisição menos onerosa, admitindo o uso de instrumento particular. Hipótese que enseja interpretação restritiva, limitando-se às aquisições de imóveis pelos cidadãos, nas quais o cunho social é evidente por prestigiar o direito constitucional à moradia. Benefício não estendido às dações em pagamento, realizadas por adquirentes imobiliários inadimplentes em prol dos seus credores, ainda que estes sejam agentes financeiros integrantes do SFH. Hipótese que exige instrumento público. Negado provimento ao recurso, mantida a procedência da dúvida.
1. Cuida-se de recurso interposto contra sentença proferida pela MMª Juíza Corregedora Permanente do Oficial de Registro de Imóveis e anexos de Jundiaí, que, em Procedimento de Dúvida, negou acesso ao fólio do título consistente em contrato de dação em pagamento relativo ao imóvel matriculado sob n° 29.112, em razão de ter sido celebrado mediante instrumento particular (fls. 60/62).
Foi interposto recurso a fls. 71/74, no qual há insurgência contra tal entendimento. Sustenta a recorrente que o instrumento público é inexigível, por se tratar de exceção à regra disposta no artigo 108 do Código Civil, considerando ser ela, a beneficiária da dação em pagamento, entidade pertencente ao SFH, tal qual previsto no artigo 61, § 5°, da Lei nº 4.380/64.
A douta Procuradoria de Justiça opinou pelo improvimento do reclamo, com a negativa de acesso ao fólio (fls. 82/84).
É o relatório.
2. De início, pode ser observado que, de fato, a regra geral é a exigência de instrumento público nas transações reais imobiliárias.
Mas há exceções excludentes da exigência da escritura pública, quais sejam: A) quando lei especial dispuser em contrário; B) naquelas transações de valor igual ou inferior a 30 salários mínimos.
Neste sentido, dispõe o artigo 108 do Código Civil em vigor, “verbis:
Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País (grifos não originais).
Quando ausentes qualquer destas hipóteses excepcionais, incide a regra geral e o instrumento público torna-se essencial em tais transações reais imobiliárias.
Não é o que se dá, contudo, quando cidadãos adquirem imóveis mediante financiamentos de cunho social, tal qual previsto no artigo 61, § 5°, da Lei nº 4.380/64, que instituiu o Sistema Financeiro da Habitação.
Tal dispositivo normativo admite a contratação mediante instrumento particular, ficando dispensada a escritura pública nestas transações relativas ao já mencionado SFH.
Mas tal liberalidade (dispensa da escritura pública) só deve ocorrer quando os recursos provenientes do SFH se destinem à aquisição de imóvel pelo particular, ou também cabe nos casos em que se dá o percurso inverso, ou seja, o consumidor inadimplente desiste do negócio e realiza dação em pagamento em prol do seu credor, o agente financiador?
Neste último caso, no qual o interesse social na aquisição do bem se encontra ausente, também é aplicável a benesse prevista no artigo 61, § 5º, da Lei nº 4.380/64, e, “ipso facto”, se prescinde do instrumento público?
A resposta só pode ser negativa.
Tal conclusão decorre, “ab initio”, da análise do conteúdo do já referido artigo 61, § 5º, da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, com a redação dada pela Lei n° 5.049/66, senão vejamos:
"§ 5º Os contratos de que forem parte o Banco Nacional de Habitação ou entidades que integrem o Sistema Financeiro da Habitação, bem como as operações efetuadas por determinação da presente Lei, poderão ser celebrados por instrumento particular, os quais poderão ser impressos, não se aplicando aos mesmos as disposições do art. 134, II, do Código Civil, atribuindo-se o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, aos contratos particulares firmados pelas entidades acima citados até a data da publicação desta Lei.
Nota-se, assim, ser incontestável que, nas transações relativas ao SFH, em regra revestidas de interesse social, a escritura pública fica dispensada.
De fato, “ex vi” da primeira parte do artigo 9° da Lei nº 4.380/64, as transações típicas do sistema financeiro da habitação têm nítido caráter social, o que justifica a menor onerosidade consistente na dispensa da escritura pública prevista no artigo 61, § 5º, da mesma lei.
Ocorre que o acesso a tal benesse deve ser reservado somente aos menos afortunados, dado o cunho social que, repita-se, justificou a existência de tal hipótese.
Confira-se, nesse sentido, o disposto no artigo 60 da mesma Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964:
Art. 60. A aplicação da presente lei, pelo seu sentido social, far-se-á de modo a que sejam simplificados todos os processos e métodos pertinentes às respectivas transações, objetivando principalmente:
I - o maior rendimento dos serviços e a segurança e rapidez na tramitação dos processos e papéis;
II - economia de tempo e de emolumentos devidos aos Cartórios;
III - simplificação das escrituras e dos critérios para efeito do Registro de Imóveis.
Evidente está, portanto, a forte conotação social que impregna as aquisições imobiliárias realizadas com recursos do SFH, em prol do direito à moradia insculpido na Carta Magna, o que as torna merecedoras do tratamento protecionista e garantidor de menor onerosidade consistente na dispensa da escritura pública.
Mas outras transações, como aquela versada no caso em tela, sem qualquer cunho social, ainda que envolvendo entidade pertencente ao SFH, não é digna de tal benesse.
Tal conclusão se extraiu da exegese do já referido artigo 61, § 5º, nos termos da lição de Maria Helena Diniz, quanto à interpretação da lei pelo método teleológico:
Interpretação teleológica é a técnica que objetiva adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais, sendo, por isso, também denominada ”sociológica”. A técnica teleológica procura o fim, a “ratio” do preceito normativo, para, a partir dela, determinar seu sentido.
O sentido normativo requer a captação dos fins para os quais se elaborou a norma, exigindo, para tanto, a concepção do direito como um sistema, o apelo às regras da técnica lógica válidas para séries definidas de casos e a presença de certos princípios que se aplicam para séries indefinidas de casos, como o de boa fé, o da exigência da justiça,o da igualdade perante a lei, etc.
A mesma interpretação restritiva deve ser dada às Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, em seu capítulo XX:
102. Somente serão admitidos a registro:
a) (...)
b) escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e testemunhas, com as firmas reconhecidas, dispensado o reconhecimento de firma quando se tratar de atos praticados por entidades vinculadas ao Sistema Financeiro da Habitação (SFH);
De fato, toda norma criadora de benefícios deve ser interpretada restritivamente. Isto porque, sempre que há ganho para alguns (aqui, os adquirentes de imóveis desonerados pela dispensa da escritura pública), surge, em contrapartida, prejuízo para outros (no caso, os integrantes da classe notarial, não remunerados em razão da dispensa de tal formalidade).
Razões pelas quais, o instrumento público é exigível nas dações em pagamento realizadas por adquirentes inadimplentes em favor das entidades financiadoras, ainda que estas sejam integrantes do SFH. Isto considerando a ausência de cunho social em tais transações, a afastar o benefício previsto em lei que deve ser interpretada teleológica e restritivamente.
A recusa ao registro do instrumento particular de dação de imóvel em pagamento é, assim, de rigor.
3. Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso, para que seja mantida a procedência da dúvida suscitada e se impossibilite o registro do título.
(a) GILBERTO PASSOS DE FREITAS, Corregedor Geral da Justiça e Relator
|